No país do jeitinho

09.10.2012 - Livro

Ilustração de Yan Sorgi

Em sua edição de número 181, a revista BRAVO! traçou um panorama de nossa mais nova antologia, organizada por Luiz Ruffato com a pesquisa de Ramon Mello e Rodrigo Monteiro, Sabe com quem está falando? é, segundo a BRAVO!, um guia sobre a corrupção brasileira.


Literatura

Edição 181 – Setembro 2012

No País do Jeitinho

A engraçada – e por vezes revoltante – antologia organizada por Luiz Ruffato reúne contos de diferentes épocas para radiografar a corrupção no Brasil
por Ronaldo Bressane

Se você for um ET, cair no Brasil e não entender nada a respeito do que os jornais dizem sobre mensalão, CPI do Cachoeira ou os prováveis disparos de lama da campanha eleitoral, o seu guia acabou de chegar. É a antologia de contosSabe Com Quem Está Falando?, organizada por Luiz Ruffato, com pesquisa de Ramon Mello e Rodrigo Monteiro. O trio esmiuçou a literatura brasileira dos últimos 200 anos para oferecer um apanhado de 20 contos, que versam sobre o jeitinho, a mutreta, a lábia, a fidalguia, o favor, o pachequismo, o puxa-saquismo, o complexo de vira-latas, a síndrome de doutor, o pequeno poder, o autoritarismo de quartel e outras variadas formas sob as quais corruptos e corruptores dão as cartas no Brasil. O compêndio sobre nosso pior lado abre com o célebre Teoria do Medalhão – o melhor dos textos clássicos sobre como levar vantagem em tudo. Nele, Machado de Assis expõe um diálogo em que um pai ensina ao filho como subir na vida se curvando ante os poderosos. Conselho vital: nunca confie na ironia e fuja da originalidade.

Fifinho Autoridade, de Adelino Magalhães, é a divertida história de um tal Adolfo, que, à custa de seu propalado puxa-saquismo, ascende da carreira de ladrão pé de chinelo a chefe de gabinete em uma secretaria de polícia. Talvez o conto que melhor sintetize as canalhices nacionais, fundadas, afinal, no favor. Dois Dedos merece atenção por ser de autoria de um funcionário público tão conhecido pela retidão que chegava a devolver o dinheiro do orçamento municipal que não usava: Graciliano Ramos, prefeito de Palmeira dos Índios, em Alagoas, de 1928 a 1930. Craque na observação psicológica dos pequenos tipos esmagados por um poder que não entendem, Graciliano demonstra o embate feroz entre a profissão de fé na humildade de um médico e seu fascínio pelo poder de um amigo – o médico hesita entre ater-se à mera visita de cortesia e a possibilidade de garantir algum favor. O desfecho dá a fatalista visão de mundo de Graciliano, em que os pobres sempre acabam corrompidos por sua ambição mesquinha e o ideal de ética inapelavelmente é triturado pela visita cruel do tempo.

 

A indústria dos ratos

O conto de Érico Verissimo discorre sobre o tema do outono do patriarca – no caso, um general da reserva na cidade de Jacarecanga que lembra com saudade de velhos embates entre maragatos e chimangos e do tempo em que mandava um diretor de jornal engolir literalmente a matéria que havia escrito atacando o militar. O velho é acossado por Petronilho, seu criado negro, que teve o pai morto pelo próprio general e se delicia em assistir aos últimos dias da besta-fera. Também deriva desse subgênero o conto de Otto Lara Resende, que segue, em precisa linguagem, a ascensão fulminante de um indivíduo sem nenhum talento a não ser aquele de fazer-se notar pela absoluta isenção política – o cara que não se compromete, o homem que não estava lá, como essência do ser político – até se tornar ditador de seu país.

Exemplar solitário no gênero realismo fantástico, Seminário dos Ratos é uma das melhores narrativas de Lygia Fagundes Telles, um dos seis autores vivos presentes na coletânea. Trata da praga da burocracia, aqui representada por funcionários da Ratesp, que pretende eliminar os cada vez mais numerosos ratos da república. Claro que o trabalho só faz gerar mais ratos (mais ou menos como a indústria da seca no Nordeste produz mais esfaimados e os bilhões despejados em projetos de despoluição do rio Tietê nunca resolvem de fato o problema). O conto, cuja progressão de pesadelo evoca A Casa Tomada, de Julio Cortázar, é todo estruturado em conversas hilárias.

 

Em troca de dinheiro

Um par de contos também fundados em diálogos encerram a engraçada e por vezes revoltante antologia. Possivelmente o maior dialoguista do Brasil, Luiz Vilela constrói em Más Notícias uma narrativa toda no papo entre correligionários e um candidato a prefeito cujo caminhão de comício acabou atropelando boias-frias. No desdém pela morte de uns pobres coitados que só serviriam para eleitores, Vilela exibe a mesquinharia miúda do poder – o final é de uma ambiguidade antológica. O outro conto é Na Serra, Fora Dela, de Marçal Aquino. Aqui, não há política ou políticos, mas tão-somente o jogo de poder entre quem tem – o narrador anônimo, amoral, desencantado e cúmplice de um fazendeiro que trata os funcionários como escravos – e quem não tem, como o pai de duas meninas oferecidas em troca de dinheiro. A corrupção é tão profunda que parece arcaica, não fosse o conto uma espécie de fábula contemporânea, em que o narrador se assusta com a possibilidade de “envelhecer e continuar acreditando que, no fim, as coisas podem acabar, de alguma maneira, dando certo”. Pelo conjunto de histórias do livro, o leitor certamente decidirá que, se desde o começo as coisas não foram feitas à correção, não há redenção ou final feliz possível – a não ser que se dê um jeitinho.

Em: http://bravonline.abril.com.br/materia/no-pais-do-jeitinho