No corpo, na casa e na cidade, de Monica Figueiredo

02.07.2012 - Livro

 

Sobre o livro

Não se afobe não. Entre devagar neste livro, e disponha-se a percorrer os rastros que os corpos deixaram nos desvãos das casas de uma cidade ainda por descobrir. O eco de uma canção vem quase importunamente mesclar-se ao que escrevo sobre estas Moradas da ficção. Corpo, casa e cidade são aí concebidos como espaços embrionários da narrativa, como se os segredos da intimidade do corpo varassem o tempo por ficarem gravados em fundos de armários da casa habitada e na posta-restante da cidade ocupada. As canções não param de me perseguir, possivelmente porque também participam da finíssima arquitetura crítica de Monica Figueiredo, que expõe, diante do espelho, personagens de dois fins de século — o XIX e o XX —, como se elas lá estivessem para se mirar e para se confrontar no que as aproxima e no que inevitavelmente as distingue.

A autora escolheu falar de literatura a partir de es­paços do desejo feminino. Encontrou então, no corpo da Luiza de Eça de Queiroz, alguém que teve pressa e ar­deu de desejo, mas precisou esperar em silêncio, se não milênios, ao menos um século, para que futuras amantes, explorando sua casa, seu quarto, suas coisas, sua alma, dessem resposta à pergunta que ela deixara pairando no ar: com que linguagem descobrir meu corpo, habitar minha casa, ocupar generosamente minha cidade?

As amantes do futuro — Paula, “a filha de Walter” e “a mulher do médico”, personagens respectivamente dos romances Pedro e Paula, de Helder Macedo, A manta do soldado (ou O vale da paixão), de Lídia Jorge, e Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago — responderam-lhe com as vozes do seu tempo. Separa-as da Luiza de Eça um século em que, à incipiente e claudicante en­trada portuguesa na modernidade, se segue um tempo dominado pela censura, pela violência das ditaduras e das guerras. Na alegoria construída por Saramago, a humanidade precisou chegar ao paroxismo da degra­dação, acometida por uma metafórica cegueira branca, para que pudesse ver — passe o oximoro — o quanto tinha estado/sido cega. Ousaríamos quase inferir que a ensaísta reencontra a perdição da cega Luiza frente ao sarcástico “Paraíso” de O primo Basílio, no inferno do espaço concentracionário do manicômio-prisão para onde são levados os absurdos cegos de Saramago, à guisa de extermínio em massa.

À Luiza desabrigada, a quem foi roubada metafórica e literalmente a casa, a leitura singular de Monica Figueiredo apõe “a filha de Walter”, que precisa conhecer o pai para gerir a sua sexualidade edipiana, fundada na falta, até conseguir tomar posse do nome e da casa que lhe tinham sido negados. E ela o fará, diz a ensaísta em nova glosa, “em nome do pai”.

Enfim, à Luiza e ao seu corpo desejante, que a auto­ra tem o cuidado de reconhecer “apartado da grandeza existencial de Emma Bovary”, nem por isso menos trágico na luta delirante e inconsequente por uma sensualidade impossível, responde a Paula de Helder Macedo. Nela, a grande sedução está em saber encontrar uma linguagem possível para a sua aventura pessoal de amante — re­dentora de édipos próprios e alheios —, de pintora e de mulher do seu tempo, na travessia da ditadura e do pós-guerra para a swinging London, a Paris de maio de 68 e a Lisboa dos cravos de abril.

Ao leitor destas Moradas da ficção — especialista ou amante da boa literatura — um conselho: não se afobe não, para poder descobrir por que meandros críticos es­sas quatro grandes narrativas dialogam neste belo ensaio de Monica Figueiredo, que tem o mérito, entre outros, de temperar o trabalho acadêmico com o grão do desejo. E quem sabe intuirá que a Luiza lá está para que as futuras amantes quiçá aprendam a amar com o amor que um dia ela lhes deixou, como vestígios de estranha civilização.

 

Teresa Cerdeira

 Sobre a autora

Monica Figueiredo é professora de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e doutora pela mesma instituição, tem pós-doutorado pela Universidade de Coimbra, onde desenvolveu trabalho de pesquisa sobre a obra de Eça de Queiroz e suas personagens femininas. “E[ç]as mulheres: um estudo da presença feminina na narrativa de Eça de Queirós” angariou vários prêmios e garantiu que o nome da docente figurasse entre os estudiosos da obra do autor de Os Maias. Monica Figueiredo assina inúmeros ensaios críticos publicados no Brasil e no exterior, onde investiga não só a escola realista portuguesa, mas a relação mantida pela literatura oitocentista com a contemporaneidade.