Entrevista com Zetho Cunha Gonçalves

06.08.2012 - Livro


Organizador de Um grande português, contos, fábulas & outras histórias, de Fernando Pessoa, Zetho Cunha Gonçalves conta como começou escrever poesias, fala de sua relação com a obra de Fernando Pessoa, com as artes plásticas e com o mundo digital. Confira a entrevista exclusiva ao Blog Língua Solta.

1) Quando e por que começou a escrever poesias?

Zetho Cunha Gonçalves: A poesia chegou à minha vida pela voz humana, em sua dicção bilingue de português e nganguela – minha língua soberana e límpida, de aprendiz de gente – e Vida! Aconteceu esse encantamento (porque outra coisa não foi, nem chamar lhe sei outro nome), numa pequena povoação no sudeste de Angola, rodeada de gente muito bela e sábia, onde não havia luz eléctrica nem água canalizada. Cutato, nome do rio que lhe dá o nome, é o seu nome – e, para mim, a pátria inaugural da poesia.
Eu não sabia, nem consciência poderia ter – nesse tempo do balbuciar aprendiz das minhas primeiras sílabas, muito anterior ao tempo da escrita e da leitura –, de que se chamava poesia àquele encantamento de estar vivo, que me chegava tão natural e sem preço, como um dia de sol ou um dia de chuva, pela força hipnótica das palavras, na voz sábia dos mais-velhos, através de jogos de adivinhas, provérbios, canções e contos da tradição oral.
Ter vivido – e esse é um dos privilégios maiores da minha vida –, estas belas e riquíssimas tradições no quotidiano da minha infância e adolescência, fez com que eu um dia me tornasse poeta. E fez, que sejam ainda hoje – e de há muito! –, essas mesmas tradições, a sua memória e o seu fulgor intemporal, o húmus e a placenta dos meus versos e da literatura infantil e infanto-juvenil que venho fazendo. Perseguir a verso e sílaba esta poesia, re-inventá-la em transgressão e rigor, tem sido a razão da minha vida enquanto poeta. E não tenho outra: é preciso criar para Criar, tudo está ainda por nascer.
Começar a esgaravatar palavras e a ordená-las com a forma de versos, e por escrito, isso aconteceu aos onze anos de idade. Eu estava ameaçado de expulsão do colégio onde estudava como aluno interno, o Colégio Alexandre Herculano, na cidade do Huambo. Era ano de exame, e sabia que, a consumar-se a expulsão, iria ter aborrecimentos terríveis e uma valente surra do meu pai, que nunca me havia tocado.
Depois de mais uma expulsão de uma aula, fui para o campo de futebol, faltando às aulas restantes do dia. Levava os livros e os cadernos debaixo do braço, plenamente convecido de que seria expulso. Eram 11 horas da manhã, uma muito bela manhã azul de Fevereiro. Sentei-me no chão, encostado a uma das balizas, e, passado algum tempo, foi surgindo dentro de mim a ideia e a materialização de um soneto (o único que escrevi em toda a minha vida, com tudo certinho conforme a gramática impõe: métrica, sílabas tónicas e rimas), que acabou tomando a forma de uma carta de despedida, num acto soberano de catarse e de exorcismo.
Chamar hoje poema àquilo, é um verdadeiro insulto à poesia. Mas foi a partir daí que a escrita se apossou de mim, para nunca mais nos abandonarmos ou separarmo-nos um do outro. Isto, muito embora tenham sido necessários muitos e muitos anos de leituras e de escrita deitada ao lixo, para chegar à proximidade de uma voz que se pretende não ser apenas mais um ruído no vasto universo das letras.
Quanto à expulsão, acabei sendo expulso três anos depois, a 10 de Junho de 1975, quando o Dia de Camões já não era feriado em Angola.

2) Você é o organizador de Um grande português, contos, fábulas & outras histórias, de Fernando Pessoa. Qual a sua relação com a obra poética de Pessoa?

Zetho Cunha Gonçalves: Na Angola colonial, onde nasci e cresci, também os feriados nacionais de Portugal eram todos celebrados. E foi justamente na comemoração de um desses feriados, o 10 de Junho (Dia da Raça, se chamava então) de 1967, que eu, obrigatoriamente inserido no desfile escolar, tive que ler em público o poema “Padrão” do livro “Mensagem”, de Fernando Pessoa. Esse poema, como é sabido, tem que ver com a “descoberta” de Angola por Diogo Cão, razão da sua escolha.
Foi esse o meu primeiro contacto com a obra poética do genial malabarista das máscaras e dos heterónimos. Anos depois, fui lendo a sua obra, tão vasta e desigual.
Enquanto leitor, tenho para mim que a obra poética de Fernando Pessoa e seus heterónimos carecia de uma escolha antológica implacável, baseando o seu critério de feitura apenas na mais extrema qualidade estética e poética.
Relidas as antologias existentes e de que tenho conhecimento, elaboradas todas elas com os mais nobres e variados propósitos, em nenhuma achei o prazer estético e a deleitada fruição de leitura que a mim mesmo me queria oferecer. Daí, ter organizado Os 47 Poemas de vida de Fernando Pessoa: Antologia de cabeceira, que são (resguardando toda a subjectividade que qualquer escolha deste jaez sempre comporta) os mais belos e fundamentais poemas da sua obra.
E, na sequência desta antologia, coligi todos os textos que enformam aquela que foi talvez a mais violenta polémica intelectual do século XX em Portugal, espoletada por Fernando Pessoa, em Notícia do maior escândalo erótico-social do século XX em Portugal e, noutro volume, Fernando Pessoa: As vozes da intimidade, acolhi todos os textos dos testemunhos dados à imprensa escrita por aqueles seus contemporâneos com quem mais intimamente conviveu, foi amigo, e, não raro, sobre quem escreveu, ou a quem mais revelou da sua intimidade literária. Por fim, reuni a ficção que andava dispersa…

3) O que te motivou a organizar esta coletânea?

Zetho Cunha Gonçalves: A inexistência de um volume que desse ao leitor comum a possibilidade de ler e de se encantar com a prosa de ficção, escrita em português, ortónima, acabada e revista pelo próprio autor, ou ainda inéditos que não obrigassem a colocar quadradinhos brancos ou reticências e notas de rodapé nos textos, por inacabados ou incompletos.
Na verdade, e dando o exemplo da minha própria experiência pessoal, para ler o que compulsei em Um grande português, contos, fábulas & outras histórias, de Fernando Pessoa, eu teria que comprar pelo menos dez ou doze obras, algumas delas edições académicas, com a transcrição ortográfica conforme os originais de Pessoa e um aparato crítico e notas de rodapé, que, muito embora reconhecendo a importância dessas edições, me coarctaria o prazer e o encantamento da leitura. E ler, para mim, é um prazer sagrado, inconspurcável. Como, naturalmente, para muita e muita gente por esse mundo fora. Afinal, nem todos nós somos académicos, e o próprio Pessoa o não foi, nunca.
Ao trabalhar na organização deste livro (que revela vários inéditos ao público brasileiro), não hesitei em acrescentar os únicos três contos que Pessoa traduziu (completos e publicados originalmente por si, na revista Athena), de O. Henri (como se fosse uma espécie de mais um heterónimo seu), bem como acrescentar-lhe o drama estático O Marinheiro. Que outra razão não tivesse para o fazer, teria sempre a meu favor a sua inquestionável beleza e a perfeição do seu apuro estético, ou seja, aquilo por que mais pugno enquanto leitor, autor ou organizador de edições.
Humor, inteligência, absurdo, insólito e ironia são as marcas que melhor caracterizam este Um grande português, contos, fábulas & outras histórias, dando à leitura um Fernando Pessoa não raro inesperado e desconcertante, num livro irreverente, que é um hino à liberdade, e um libelo contra toda e qualquer forma de censura, de prepotência, de submissão e de conformismo.

4) Como é sua relação com as artes plásticas? Acredita que elas te ajudem a ampliar a “mensagem” da sua poesia? Por exemplo, ao publicar uma poesia e uma ilustração juntas.

Zetho Cunha Gonçalves: Se fosse invejoso, coisa que não sou, invejaria de morte os pintores. Porque eles, ao contrário dos poetas, trabalham com a matéria concreta, trabalham com as mãos (e as mãos é que pensam, na pintura), como se fossem eternas crianças brincando, divertindo-se, desafiando as cores e as formas numa despudorada sem-vergonhice nenhuma. Mas não tenho esse talento, paciência: resta-me o encantamento da contemplação.
Qualquer livro destinado a um público infantil ou mesmo juvenil, só terá a ganhar se as ilustrações que o acompanham forem esteticamente belas e prolonguem ou sublinhem o dizer que nos poemas se nomeia, expressa ou insinua. E nesse sentido, tenho a felicidade de ter a parceria de Roberto Chichorro em três dos meus livros infanto-juvenis, parceria essa que começou com Debaixo do arco-íris não passa ninguém, editado pela Língua Geral, em 2006. Para além do grande pintor que é, Chichorro tem um dom de demiurgo muito especial para trabalhar o encantamento lúdico e a sageza de ler o indizível, através da plasticidade da sua paleta de cores e de formas, e assim complementar os poemas que me coube para esse efeito ter escrito. De resto, não sou capaz de conceber um livro infanto-juvenil sem um bom trabalho plástico a complementá-lo. E, com isto, gostaria de lembrar também, que um bom pintor pode não ser um bom ilustrador, como o contrário é igualmente verdade. Não são frequentes os casos em que as duas faces da moeda coincidem. A ilustração requer um talento e um dom muito próximos ao sortilégio e ao prodígio. Como, de resto, toda e qualquer execução prática de arte, profissão ou vida.

5) Acredita que as mudanças impostas pelo mundo digital, com as redes sociais e as novas mídias, podem mudar (prejudicar) nossa relação com a poesia, com o lúdico?

Zetho Cunha Gonçalves: Não, não acredito que as redes sociais ou as novas mídias possam prejudicar ou mudar assim tão radicalmente a nossa relação com a poesia. Não sendo eu um frequentador assíduo, nem de blogues nem de redes sociais, a quantidade de textos do género chamado poético que por lá se pode encontrar revela como continua a haver uma solidão e um desejo de comunhão e de expressão em quem lá se faz publicar, em tudo semelhante ao que sempre aconteceu, desde que o Homem existe. Apenas os meios são outros. Ou podem ser outros.
Não esqueçamos que a poesia tem a idade da voz humana. Ao tomar pela primeira vez consciência de si (mesmo quando nenhuma escrita havia sido inventada e a narrativa do quotidiano se pautava pelas inscrições e gravuras hoje chamadas de rupestres), foi pela associação de imagens e de ideias como forma de expressão e de construção da sua própria memória colectiva, que o ser humano fez inscrever na vida o seu peculiar universo, através da música verbal do canto e do poema.
Essa imensa minoria, como definiu o poeta espanhol Juan Ramón Jiménez os leitores de poesia, continua a ser a mesma, quer para o livro impresso (sonho maior de qualquer bloguer, curiosamente, é esse de ver os seus escritos impressos em letra de forma), quer para o texto ou livro apresentados em suporte digital.
O mundo, que durante milénios dele prescindiu, pode muito bem viver sem dinheiro. Mas nem um instante o mundo sobreviveria (“globalizado”, como nos querem fazer acreditar que está), se acaso lhe faltasse algum dia a Poesia. Todos os terramotos, maremotos e demais catástrofes naturais nada seriam se comparadas ao suicídio coletivo que a ausência da Poesia levaria a Humanidade a cometer. A Poesia, o Riso e a Ternura.
Contudo, continua e continuará a escrever-se e a publicar-se poesia: é a forma mais nobre talvez de se tornarem mais leves as asas à beira do precipício, transpondo-o em voo firme, ao mesmo tempo que uma luminosidade larga, fresca e repousante fica pairando e irradiando sobre todos os pontos cardeais dos sentidos de quem passa, toca e se apodera do fogo.
A Poesia é a arte da inutilidade sem a qual nenhuma sociedade de consumo se mantém funcional. Um dia, talvez os psiquiatras, os psicólogos e quejandos profissionais do tratamento das depressões, das esquizofrenias, das neuroses e das restantes maleitas do chamado foro mental humano, em vez de Prozac ou de qualquer outro antidepressivo cientificamente testado, receitem poemas aos seus pacientes.
Talvez.
Mas nada substituirá nunca o prazer de folhear um livro, o acto físico de o possuir e fruir como a um corpo que muito se ama. Ou, então, será um prazer que o futuro ensinará aos vindouros, como hoje se ensina a ler e a escrever, a desenhar ou a pintar. Enquanto houver um ser humano que seja, à face da Terra, haverá poesia. E haverá livros. Digitais, ou não.